"Penetras surdamente no reino das palavras."
Carlos Drummond de Andrade.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Um pouco mais.

“Mas quem sofre sempre tem que procurar
pelo menos vir achar razão para viver e,
na vida, algum motivo pra sonhar.
Ter um sonho todo azul, azul da cor do mar.”
[Tim Maia.]

Há dias em que me levanto com peso, preguiça do dia que amanheceu. Ao pensar que estar viva é um milagre, os olhos despertam, o corpo ganha força, a alma fica leve, despreocupada, o sol com seus longos raios, imponente feito um rei. Percebo que viver não é tão ruim assim e que muitos se distraem do tempo, perdidos em pensamentos, distantes da lucidez. Enxergar racionalmente é ruim demais, prefiro apegar-me às coisas do coração e ver nelas um modo de escapar da tristeza. A cada batida, um pulso; a cada pulso, um recomeço; a cada recomeço, uma nova história; a cada história, um novo sonho; a cada sonho, a certeza. Certeza de que pode, sim, haver um final feliz.

domingo, 20 de junho de 2010

À vocês, com amor.

    Hoje acordei sem vontade de nada fazer, nada falar, nada respirar. Talvez seja pela noite anterior, cheia de raios luminosos ao céu, a lua apagada soprando um ar triste e pesado. A chuva caía silenciosamente e eu podia ouvir o tilintar que as gotas faziam na calha velha do telhado.
    Acordei quando a madrugada esticava seus longos e negros braços. Forcei para que meus olhos não abrissem. Esforço vão. Logo estava eu, a expressão assustada e com os mesmos olhos arregalados, criando a expectativa de que saltariam para fora a qualquer segundo.
    Não, eu deveria concentrar-me em algo útil, o que naquele momento era dormir. Mas sabia da dificuldade que sempre encontrara em adormecer, depois de despertar. Ah, seria tão mais fácil se me rendesse ao cansaço físico-mental de meu corpo...
    Os músculos doíam, tanta foi a força que fizera contraindo-os pelo frio cortante fora do colchão.
    Eu tinha todos os motivos do mundo para querer desistir de todos os pesos que me aporrinhavam pelas costas o dia/tempo todo. Pensava que levar a situação até aquele ponto seria um erro por demais banal. Aquele não era o melhor momento para refletir, talvez encontrar alguma solução para meus problemas ditos irreversíveis. Contudo, o que fazer se aqueles monstros chegavam, queriam e estavam prontos para devorar meus sonhos?
    No mesmo instante, joguei minhas mãos geladas e trêmulas para fora do cobertor. Juntei-as. Surpreendi-me a balbuciar uma oração. E lá estavam: vocês.
    Apareciam a minha frente, sorrindo. A imagem era tão perfeita e colorida que eu jurava poder tocá-los ao menor impulso de esticar os dedos. Surgiram de repente, como se me chacoalhassem a dizer que estavam e permaneceriam ali, todo o tempo.
    Foi justamente com essa imagem nítida e calma que notei a diferença que fizeram e sempre faziam em minhas distrações e medos, em meus dragões imaginários ou em minhas manias insuportáveis.
    Lembrei-me de quando rolávamos ao chão a brincar daquilo que não tinha nome, das conversas longas e vagarosas onde não tínhamos pressa em terminar tão cedo. Das guerras de travesseiros e dos segredos mal resolvidos que sempre acabávamos por descobrir. Das soluções corajosas e, por vezes, amedrontadas que tínhamos quando tudo não passava de desilusões. Das risadas escandalosas e sarcásticas quando ofendíamo-nos sem intenção alguma de ferir. Dos abraços de desculpas e perdões a qualquer hora, em qualquer lugar, de qualquer modo.
    Lembrei-me até dos ciúmes incontroláveis que tínhamos quando um de nós aproximava-se de outra pessoa. O medo de perder-nos era tanto que o rosto fechava-se numa expressão de reprovação. Logo, alguém percebia e esboçava um largo sorriso dizendo: “Eu estou aqui, não tenha medo.”
    Lembrei-me dos esguichos d’água que soprávamos quando alguém dizia algo que, de tão engraçado, melhor seria cuspir tudo aquilo que havia na boca do que perder aquele momento de risadas desprevenidas. Dos conselhos, das fraquezas, das angústias e do reconhecimento. Reconhecer que se está errado é a melhor virtude de um ser humano, depois da humildade. E vocês ensinaram-me isso. Tudo isso.
    As lágrimas que derramamos, a saudade, a falta que sentimos quando estamos longe é prova de que há mais do que laços de sangue, há mais do que amor que verte sangue em sua cor. Há mais.
    Involuntariamente, despertei-me do pensamento longe e, quando pude perceber o que fazia, estava a olhar fotos. Nossas fotos. Colocava-as em meu peito e as apertava, como se aquele gesto fosse levar-me pra mais perto de vocês.
    Notei que não havia mais sonhos ruins. O vento lá fora soprava calmo e tranquilo. A tempestade passara.  Com o pijama velho e listrado que vestia, sentei ao pé da cama e pus-me a cantarolar alguns versos. Eram velhos versos. Como se não bastasse, abri um empoeirado livro onde guardava o que, na vida, achava o bastante. Lá dizia Vinícius de Moraes:

“Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.”

    Foi em vocês que eu depositei tudo o que lera embaraçada entre lágrimas frenéticas e desesperadas. Mas, pela primeira vez, eram de alívio. Uma sensação como quando sinto o cheiro de terra molhada. De quando, tremendo de frio, aqueço-me com a água quente brotando e alimentando minha pele com calor.
    Se pudesse me estenderia até a eternidade, porém, como dizia meu mestre Rubem Alves, é preciso escrever curto porque a arte é longa e a vida é breve.
    Eu os amo, o que sou os devo e sou feliz por ter vocês, amigos.