"Penetras surdamente no reino das palavras."
Carlos Drummond de Andrade.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Saudade.

    Eu não sei bem ao certo o porquê, mas de repente deram-me saudades...
    Daquela época em que eu, ingênua que era, brincava de pique-esconde com minhas primas no quintal de casa. Ou de quando nós fingíamos ser –e muito bem, por sinal- Power Rangers a salvar a galáxia que estava em perigo.
    Do suco de acerola com limão que mamãe punha a mesa junto do jantar: arroz, batata-frita e salada de pepino. Dava-me água na boca só em imaginar por quanto tempo –mais precisamente, uma tarde- estive esperando por, simplesmente, poder sentar-me à mesa e comer junto dela.
    Dos meus gritos e escândalos quando era chegada a hora de entrar no ônibus escolar. Poderia ser exagero, manha ou até uma espécie de loucura, mas eu sentia, com todas as minhas forças, medo.
    É, medo de que alguém ou algo pudesse me afastar de quem amava pelo tempo que estaria distante –quatro horas. Poderia não ser o maior do mundo, mas eu chorava e sentia calafrios quando pensava, as cinco da manhã, que, a partir dali, mais duas horas e eu estaria entrando num colégio frio, com pessoas estranhas e inteligentes. Era quase masoquismo, mas minha cara de apreensão e de ‘estou esperando o pior’ afligia quase toda a rua que, com a maior das certezas, acordava com minha revolta.
    Saudade dos meus álbuns de fotografias de duplas infantis ou dos discos de vinil que eu não deixava ninguém sequer passar os dedos. Jubilosa ficava quando a vitrola começava a reproduzir as primeiras notas. ‘Ursinho pimpão’ se repetia por dez mínimas vezes. Logo ouvia papai gritando da sala de jantar: “Mais uma vez, minha filha?”
    No fundo, eles entendiam que meus sonhos ainda eram de areia, tudo era muito compreensível, assim como imaginar que uma nuvem poderia, a qualquer minuto, transformar-se num dragão forte e valente, desses que assistia nos desenhos animados ao entardecer.
    Eu era uma simples e ingênua criança. Ainda não conhecia as malícias que a vida, mais à frente, ensinaria ou obrigaria a aprender. Momento efêmero, hoje fica guardado numa simples caixinha de papel, um laço de fita de cetim vermelho pendurado na borda, acima uma etiqueta amarela e, em seu centro a palavra ‘recordações’ escrita à tinta.
    Eu me lembro de tudo –ou quase tudo. Fica descrito num lugar absorto, obscuro, longe de ser palpável.
    Saudade do sorvete de pistache que tomava nos fins de semana na sorveteria da esquina, aliás, maiores ainda eram os confeitos e as caldas coloridas que eu depositava. Melhor sensação do que degustar uma a uma, comendo pouco para acabar tarde, não havia. Ou melhor, havia quando olhava para o velhinho que servia os doces e ele, numa expressão de ternura, oferecia-me mais uma colher.
    Saudade dos castelos de terra vermelha que construía com pás de plástico, ou do brinquedo alto de ferro da praça que fingia/imaginava ser meu verdadeiro lar, onde viveria feliz e saltitante, criaria filhos, arrumaria e apaixonaria-me por um príncipe encantado e junto dele teria muitos sonhos e vestidos brancos –como os das noivas.
    Esquecia-me que contos de fadas não existem na vida real.
    Não que ela seja árdua demais ou tão difícil quanto se diz ser, mas, se pudesse preferir algo, seria voltar a ser pequena –de comprimento e de coração.
    Ah, se eu pudesse dizer a cada pequenino que vejo caminhar na rua arrastando seu brinquedo que aproveitasse e sugasse o máximo o que conseguisse dessa fase...
    Fugaz, passageiro, momentâneo.
    E é justamente por isso que vive-se tão intensamente, está aí a grande jogada, não vê-se as horas passarem, não espera-se nada maior do que um simples abraço de boa noite, não anseia-se por matérias grandes, desde que ela seja uma diversão e traga risos de satisfação e felicidade.
    De repente, você acorda e não se vê mais, seus pés já não se sustentam na mesma cama de sempre, é preciso mais, pedidos maiores, ânsia por coisas mais altas que te surpreendam e não deixem sua vida tornar-se simplesmente a palavra mais odiada contemporaneamente: rotina.
    É justamente por isso que existe a falta, esse sentimento melancólico e de ausência que faz-me sentir sozinha.
    O que me conforta é saber que sou somente mais uma dentre os milhões espalhados pelos quatro cantos do universo. De quê adianta lamentar-se se hoje é o verdadeiro dia?
    Nada de lágrimas derramadas ou de sofrimento vão.
    A mim cabe apreciar os bons momentos do agora, mesmo que estes sejam muito sofridos e difíceis de se conquistar. Há graça nisso também. Nada de facilidades ou de comodismos. Deve-se lutar, com todas as forças que outrora possuía, e ir tocando em frente. Não se pode perder a única viagem que possui-se, há somente um trem e este marcha depressa. O maquinista não perde o trilho, há vagões que subordinam-se a ele e precisam de sua guia. É lindo viver.
    A alegria brota-me a face quando imagino poder lembrar-me de tudo o que já se foi e ainda sentir, poder enxergar e andar por aí estampando e deixando... saudades.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Beatriz.


"Me leva para sempre, Beatriz. Me ensina a não andar com os pés no chão." [Ana Carolina]
    De repente, da janela do meu quarto eu vejo tudo escurecer. Faz frio. Os raios quentes do sol que batiam na persiana se esfriam. Anoitece.
    Anoitece meu interior, coloco a palma da mão em meu peito para sentir se ele ainda bate: o coração. Sim, respiro lentamente, um ar ofegante, pausadamente cansado, mas é como se o mundo houvesse dado as costas. Meu mundo me traiu, deslocou-se de rodinhas de onde sempre estivera.
    Eu estava em paz, tudo estava em paz. As pálpebras pesam e eu procuro concentrar-me em não dormir, afinal, havia hibernado por quinze horas. Dormi verão e acordei in[f]verno.
    Melhor seria se me fechasse dentro da casca de egoísmo a qual me escondi pelos últimos dias. Era confortável pensar que estivera só por tanto tempo...
    Ao menos não teria de ir ao escritório à tarde. Estava tudo fechado; era Feriado Nacional e, mesmo que não fosse, as chaves de minha sala estavam dentro da mala amarela a qual fiz questão de trancar no porta-malas do carro. Bem longe de mim.
    Meu desejo seria estar, nesse momento, num lugar deserto. Queria sentir cheiro de terra, de água e de verde. É, eu estou sozinha, dentro de casa, um ventilador chato chacoalhando suas pás e soprando o ar rarefeito pelo quarto abafado.
    Mas o seu cheiro ainda está impregnado em tudo o que é meu - que era seu -. Meu travesseiro - aquele que já botei na máquina de lavar pela décima segunda vez -, ainda exala um perfume amadeirado. Seu perfume.
    Por falar nisso, seu aparelho de barbear ainda está no banheiro. Sua toalha de rosto ao lado dele, exatamente como você deixou. Sua caixa de Cotonetes ainda permanece intacta na primeira gaveta do criado-mudo, entreaberta. Seu chaveiro de uma Torre Eiffel envelhecida pendurado na porta, seu gel fixador de cabelo azul na penteadeira, suas lentes de contato mergulhadas no soro fisiológico, seu relógio de pulso descascado na estante e tantas outras coisas a que se apoderou. Tudo para enfeitar algo invisível a meus olhos: a aparência.
    Você se vestiu esse tempo todo, investiu em futilidades e babaquices. E eu, coitada, imaginando ter-me apaixonado pelo galã da novela das oito, deparo-me com o mais descarado vilão de filmes bangue-bangue.
    Logo eu, que sempre prometi a mim mesma nunca ceder a esse seu tipinho, me faço de vítima?
    Pior de tudo é que é justamente esse seu sorriso torto e esses seus dentes amarelados que me fazem feliz. É essa sua cara marrenta de “me deixe ficar aqui por mais dez minutos” que me fazia ficar observando-o dormir na cama desarrumada pelo tempo que fosse. É esse seu jeito de “ninguém me ama, ninguém me quer” que sempre contava para, depois de ter me despedido, voltar correndo só pra abraçar-lhe e dizer, mais uma vez, que era contigo que queria ficar pelo resto de minha vida.
    É piegas repetir tudo isso pro espelho, de novo e depois de tantas vezes, mas eu me olho e não enxergo-te atrás. Hoje sou só. A imagem refletida é minha. Talvez esteja refletindo você, longe dos meus cômodos. Longe da sala onde esticávamos nossos pés, deitados, e esfregávamos nossas meias pra talvez esquentar o frio que sentíamos – dentro de nós -.
    Eu só ainda não entendi o que você foi fazer longe daqui, longe do s[m]eu mundo. Saiu sem nada dizer, sem alguma explicação. Não sei porque ainda procuro respostas. Acordei e...


“Eu não entendo, sei que estar ao teu lado é o que eu mais quero com todas minhas forças embora meu desejo de sair, livre por aí, sem direção, seja maior. E eu guardo comigo tudo o que vivi junto de ti. Guardo na memória nosso primeiro abraço e, se quiser, ainda posso recordar a imagem de nossos longos braços se entrelaçando e formando um só. Você me aquecia quando ventava lá fora e, como naqueles filmes americanos, levava teu guarda-chuva a me acompanhar até o carro, abria a porta e eu me despedia de ti, você logo adivinhava o que eu faria. Jogava-o para o alto e saíamos correndo, pisando em poças sujas na avenida. Eu a rodava e era como se o mundo estivesse rodando também, nossos olhos fechados.
Agora, os seus estão fechados, você dorme. E eu te olho. Olho pensando em como estará quando acordar e ler isto que agora escrevo. Não que você não sobreviverá sem mim, mas já havíamos enfiado nossas garras na terra e, sim, imaginava que ali elas se fixariam, firmes. Nada as deteria, exceto um sonho. Sonhei com tudo o que planejamos juntos, nossos filhos pulando e cantando as primeiras músicas que aprenderiam com a professora no primário. Sonhei com o cheiro do jantar fresco que você prepararia quando chegasse cansado depois de mais um dia exaustivo de trabalho, jogaria a maleta ao chão e correria desfazer o rabo de cavalo, afagaria seus cabelos e adivinharia num estalo: fragrância de camomila, aquela que eu adorava sentir em seus fios.
Sinto em dizer que não fui um sonho teu, e há agora uma faca afiada cortando-me o peito por estar usando o passado dos verbos a que me refiro. Eu, sinceramente, não tenho o que dizer, quero fugir de mim, quero tentar me enganar dizendo que tudo acabou quando poderia apenas começar.
Não posso esperar mais, um minuto apenas e eu desisto de ir pra ficar aqui, te olhando. Mas você irá despertar e eu não terei coragem. Sou mesmo um covarde e espero estar bem longe daqui quando você pensar em sair correndo a gritar pela avenida recheada de folhas secas. Eu não estarei mais por perto. E mesmo se estiver a te observar, uma vez que passar pela porta, não haverá retorno. Minha passagem é só ida. E assim foi com nosso amor.
Esse algodão que está agora a olhar representa tudo o que fui a você: simples ilusão. Parece nuvem, parece fumaça, parece até doce. No fundo, não passa de algo seco, sem gosto, sem cor, sua maior utilidade é secar machucados, cicatrizes. Espero que quando o pegue, seque seu coração.
Prometa-me uma única coisa, antes que eu me levante e corra por aí, sem direção? Se houver volta, não aceite, não me abrigue. Tranque as portas, troque todas as fechaduras; eu ainda tenho as chaves e sei que não irei me desfazer delas. Nem poderia, foi ao abri-las que eu encontrei a felicidade. Estou me despedindo dela, pelo resto de mim e do que resta de mim. Não há perdão, por isso não irei me referir a nada que te provoque piedade. Você não merece, não ME merece.
Seja feliz!”


    Foi arranhando as unhas compridas pela folha áspera que senti a boca amarga e, num súbito delírio de exterminar-me do universo lembrei-me do maior sentimento que haveria de existir. Havia parte dele comigo a qual ninguém nem nada poderiam tirar. Eu lutaria, com todas as forças e com as garras que restaram do arsenal que antes possuía, estas que ainda eram minhas, para que a felicidade que desejou-me se materializasse. Não era mais uma, não mais singular. Éramos plural, dois.
    Senti algo mover-se dentro de mim e, não mais fugaz, era permanente. Passando os dedos pelas linhas de minha barriga, eu a sentia, ele estava ali, fisicamente visível. Era real, não fazia mais parte de mera ilusão criada durante todo meus dias vividos com medo dos meus próprios olhos.
    Eu chorava, mas eram lágrimas de algo inexplicável, indizível. Estava pronta para enfrentar uma guerra se preciso fosse, mas viva. Seu coração batia, eu podia sentir, junto do meu.
    Seu nome será Beatriz: aquela que é capaz de trazer de volta a felicidade já perdida, sonhos de algodão.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Aos dezessete.

   
"Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo"
[Adriana Calcanhoto.]

    Argh, essa fase transitória que vive-se aos dezessete anos deve ser – ou é - a pior delas. Não que eu tenha que decidir a vida assim, do nada. Mas é incrível como as coisas mudam o tempo todo – e pra pior -. Cadê minhas bonecas em cima da cama ou meu jogo de tabuleiro que fazia-me a alegria nos fins de tarde?
    Não, responsabilidade, juízo e decisão. São essas as três palavras que me aporrinham pelas costas. Até a época de colegial, não há nada a se fazer porque, obrigatoriamente pra conseguir-se um emprego decente, precisa-se do certificado de conclusão do Ensino Médio. Mas, depois que tudo isso chega ao fim, a bola de neve acumulada no topo da montanha simplesmente desbarranca-se sobre sua cabeça e, é hora de saber simplesmente o que vai ser pelo resto dos dias.
    Você chora de saudade dos amigos que não verá diariamente e chora porque você tornou-se, sem querer nem pedir, um adulto estressado.
    É até engraçado e bizarro como já acostumamo-nos com a ideia de decidir-se facilmente. Mas não se tratam de opiniões maduras. É muito fácil saber o que vai vestir pra ir ao curso de inglês ou a matéria do próximo teste de Biologia. Difícil é decidir-se sobre o futuro. Vestibulares, universidades federais, provas de conhecimentos gerais, mercado de trabalho, renda mensal...
    Sem contar que, o desespero aflora quando as notas começam a aparecer em listas e você nunca encontra seu nome. “Pronto, mais um ano perdido” é o primeiro pensamento. Agora a cabeça está a milhão e você se sente uma inutilidade da natureza. Não dá pra analisar as notas de corte porque sua mão sequer deixa de tanto que treme. Ok, próximo passo: anotar telefones de dez cursinhos pré-vestibulares. Mais dois semestres com fórmulas de Física, conceitos de Geografia, versos de Literatura, contas colossais de Matemática e diálogos para tradução de Inglês.
    Não que eu já não tenha me acostumado a passar madrugadas em claro, estudando, mas seria tão mais fácil se eu decidisse ser algo mais simples, que não necessitasse de certificados nem aprovações. Mas o labirinto é sempre mais instigante porque você precisa encontrar a saída para ver-se livre, e isso é, claro e óbvio, muito mais demorado e radical do que um corredor reto e todo iluminado onde o fim é a porta que está ali, a sua frente.
    Qual é a graça de conseguir o que se espera com facilidade? Logo estará você a procura de algo que faça você sentir-se... importante.
    A gente gosta mesmo é de adrenalina e competição – ou de sofrer, quem sabe -.
    E é realidade quando os pais passam a mão na cabeça e dizem num tom baixo de voz: “Filho, tudo tem seu tempo, não se desespere.”
    Mas NÃO, estamos cheios de hormônios dispostos e que querem o tempo todo que tudo seja rápido, pra ontem. E sim, faremos/falaremos o mesmo a nossos herdeiros. E sim, daremos altas gargalhadas desse tempo engraçado e cômico que passamos, esperando merecer tudo e, no mesmo minuto, sentindo-se o mais incapaz do universo.
    Adolescência. É a vida transmutando. E não adianta querer dizer nada que conforte, o que é certo é o que se acha até que consigam provar-lhe o contrário.
    O mundo que nos aguente, ele é grande o bastante para isso.
   E quando estivermos, finalmente, ao Baile de Formatura, recebendo a graduação tão esperada, quando o canudo chegar em nossas mãos, não terá mais graça. “Quero mesmo é saber quando será o resultado pro curso de pós-graduação ao qual me inscrevi.” E por aí vai, mestrados, doutorados, quem sabe até outro curso superior. O ciclo nunca acaba. Todo mundo possui um ser desesperado dentro se si, somos seres humanos.
    Tenho certeza de que quando tiver sua casa própria numa praia lindíssima, o que queria mesmo era que fosse numa praia deserta. Ter um iate não vale a pena, melhor mesmo seria um Titanic. E o cenário não se inverte, os atores entram e saem o tempo todo. A grama do vizinho é sempre mais verde, não?
    Agora, diga-me, pra quê descabelar-se se sabemos que nunca iremos aquietar essa maquininha de fazer sonhos que é você? Como dar o próximo passo sem antes fantasiar que, no fim do arco-íris sempre tem um pode de ouro, e você poderá ser o dono? Pois, pobres que somos, devemos mesmo é sonhar, afinal, é bom, bonito e nada de capitalismo, cortesia da casa, “na faixa”, é de graça.

Distância.

"O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida."

[Carlos Drummond de Andrade]

    Hoje acordei disposta a fazer alguma loucura, algo que me faça sentir diferente de tudo o que fui até agora. Será que fui mesmo alguma coisa?
    Todos somos.
    Independentemente se fico o dia inteiro num ócio completo dentro de casa, escondendo-me de mim. Se é manhã, penso em ver o sol se pôr. Se há café quente na mesa, prefiro chocolate quente, e se não há, melhor que não tome nada. Irrito-me com minhas próprias tolices.
   Mas, sem mais rodeios, hoje acordei com vontade de andar. É, andar por aí, sem direção nem destino. Sem rumo e sem pressa de chegar. Sozinha.
    Acompanhada da brisa leve que sopra nas tardes de verão, leva meus cabelos pra longe, ora pros olhos. Incomodo-me. Se distraio-me, logo alguma criança com sua bicicleta desajeitada aparece-me a frente e, se não há o pensamento rápido do desvio, ela, com sua inocência explícita, chocar-se-á contra a pessoa mais desajeitada e desastrada desse mundo: eu.
    Pensando bem, esse jeito de definir-me já é quase involuntário. Não que eu seja só tombos e caídas, mas se consigo cortar-me com uma reles faca despontada, quem dirá com a lata de molho vermelho que insisto em abrir quando a massa está quase cozida e borbulhando na panela de inox do fogão?
    Insisto a fazer coisas que outrora condenava, e, por tantas vezes frustrada, decidi que a partir de hoje não mais abrirei a boca a dar opiniões. De que adianta criticar ou consentir se sei, com a mais pura certeza que existe, que irei fazer o que antes afirmei ser errado?
    Não que isso esteja certo, mas creio mesmo é que estamos nesse mundo cão de passagem. Aprendo muito mais com os desastres do que com as vanglórias. Se quer saber, aprendo até com o que é mudo: o silêncio.
    Estar sempre cercada de pessoas, ambientes e ruídos me chateia, há horas em que preciso estar cercada de mim. E só. Escuto o vazio, encho-me d’uma paz interior desconhecida e... Onde é que estava?
    Por vezes acho o rosário de pérolas azuis que ganhei de vovó, agarro-me a ele e penso estar protegida, como um escudo de algum cavaleiro valente que trava uma batalha sabendo de sua vitória, ao fim. E durmo. Sono pesado que me embriaga até o raiar do sol. Já começou o dia seguinte e assusto-me ao ver como as horas correram e ali estou eu, exatamente como me deitei. As pernas tortas e os braços esticados para fora do colchão. Eu cresci. Já não sou aquela criança curiosa que distraía-se facilmente com uma tampinha de alguma vasilha colorida da cozinha. Hoje sou eu quem cozinha.
    Sempre quis e pensei em crescer, tornar-me uma mulher de quadril largo e seios fartos, responsável e culta. Mas – como dizia o velho ditado - querer não é poder, definitivamente. Herdei os cabelos encaracolados e sedosos que mamãe tinha; sua mão fina de dedos compridos e ágeis; o pé dum tamanho enorme. Esse último foi de papai. Ah, como eu os amava.É bom sentir o cheiro de terra molhada ou de chuva após o temporal de Janeiro. É bom conseguir o que se deseja com todas as forças, seja um prêmio Nobel ou um par novo de sapatos. E é bom ter a quem amar...
    Ainda os amo, com todas minhas débeis forças, mas eu os queria aqui, exatamente ao meu lado enquanto acabo de passar um fio grosso de linha num suéter descosturado.
    Eu daria tudo pra tê-los de volta. Mas não há nada que me una à outro universo. Eles se foram, num estalo, nem tive tempo de dizer o que queria dizer - ou fazer o que queria fazer-.
    Dizem que nos arrependemos tarde demais, não é? Essa é a única coisa que me convence: quando tudo se foi, quando tudo se vai, você percebe que não há mais tempo. E, o que mais me perturba, ele corre depressa, mas não quando se trata de distância eterna.
    Nunca proferi alguma palavra que demonstrasse o que de fato sentia quando os via chegar da quitanda de esquina, ou quando eu perguntava o que havia entre seus dedos e logo os abriam. Ali estava o doce listrado de amarelo e vermelho de que tanto gostava.
    E era assim, humilde que éramos. A reunião em volta da mesa para o jantar era sagrada. Quando algum faltava, lá estava seu prato. Não existia ausência. Fomos os três em um só. Fomos.
    E hoje eles são o que sou. Riem meu riso e choram água com sal em meus olhos. Ouvem o silêncio em que mergulho todos os dias. Talvez assim, possa encontrá-los. E eu os encontro, em meus sonhos. O sangue que verte em minhas veias já correu em suas artérias. Secou-se, mas está vivo e aquecido, em mim.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Distração.

"Se você não se distrai, o amor não chega
A sua música não toca
O acaso vira espera e sufoca
A alegria vira ansiedade
E quebra o encanto doce
De te surpreender de verdade
Se você não se distrai, a estrela não cai
O elevador não chega
E as horas não passam
O dia não nasce, a lua não cresce
A paixão vira peste
O abraço, armadilha
Hoje eu vou brincar de ser criança
E nessa dança, quero encontrar você
Distraído, querido
Perdido em muitos sorrisos
Sem nenhuma razão de ser
Se você não se distrai,
Não descobre uma nova trilha
Não dá um passeio
Não rí de você mesmo
A vida fica mais dura
O tempo passa doendo
E qualquer trovão mete medo
Se você está sempre temendo
A fúria da tempestade
Hoje eu vou brincar de ser criança
E nessa dança, quero encontrar você
Distraído, querido
Perdido em muitos sorrisos
Sem nenhuma razão de ser
Olhando o céu, chutando lata
E assoviando Beatles na praça
Olhando o céu, chutando lata
Hoje eu quero encontrar você"
[Zélia Duncan.]

Por detrás da janela.

    A tarde estava monótona, quente –assim como era em quase todos os dias- e nuvens íngremes do céu anunciavam a chuva próxima.
    Do oitavo andar olhava o chão e, por um instante a visão turvou-se de um cinza-escuro que apagou-lhe a memória.
    Era assim que sempre acontecia quando, num instante transcorrido, desviava sua atenção para as pessoas andando apressadamente na avenida que até parecia movimentar-se abaixo.
    Era engraçado –e isso despontava-lhe um meio sorriso- imaginar que, por trás de cada passo apertado ou de outro que pouco importava-se com o tempo, existia alguém.
    Alguém que outrora também tivera infância, seus traumas e desejos, manhas e manhãs de sono atrasado. Fora gerado por uma mãe e chamou-a assim quando levou o primeiro tombo de bicicleta; chorou quando seus próprios instintos avisavam-lhe que logo o estômago doeria ou quando tudo o que queria era um simples cafuné. Alguém que frequentou os primeiros anos do maternal em alguma escola de esquina e, junto com os comentários bizarros das tias que tomavam chá da tarde em sua casa de que havia crescido sempre mais, tornou-se –ou fora obrigado a tornar-se- responsável e terminou o colegial. Assustou-se quando presenciou a cena de estar crescendo, desenvolvendo-se. Surpreendeu-se a criar desejos e obsessões, vontades e manias, ora desagradáveis. Nem mesmo suportava seus dias ruins.
    Sorriu quando em mãos estava o diploma de universitário graduado e, olhando para o público irradiando energia, percebeu que seus olhos começavam a encher-se d’água.
    Era a vida passando e junto dela tudo o que já fora, o que preencheu o pensamento de recordações.
    Um álbum de recordações agora folheava. Passava os dedos vagarosamente folha a folha, foto a foto; inebriou-se de algo indefinível, assim como a paz ausente há tempos. Desejava que essas sensações se materializassem e permanecessem ali, como estavam. Mas não, momento fugaz. Acabou. Passou rápido, depressa. Correu. Corroeu. Apagou-lhe e o próximo sentimento foi de ter estacionado –ou talvez aterrissado- no mundo real.
    Ali estava, o pé dormente acima do tapete aveludado e tingido de um vermelho-sangue que assustou-o por um instante e, num piscar de olhos, levantou-se correndo através do corredor iluminado por um fio amarelado de luz e surpreendeu-se a guardar todas aquelas malditas lembranças a que se metera mexer. Pra quê precisava delas justamente quando olhava fixamente para o tempo transcorrendo a sua frente? Afinal, quantas horas haviam passado desde que entrara naquele túnel febril enquanto olhava à avenida?
    Importava-se com o que viria a seguir, com qual seria a próxima cena a que mergulharia de cabeça sem pressa de voltar. Era tão satisfatório e intenso sentir-se assim, despreocupado, distante, sem tickets de retorno...
    Era o sonho no qual queria viver eternamente, era sua auto-paralisia, cena congelada, esta que era sua.
    Eram somente lembranças passadas.
    Mal sabia ele que, todas, sem excetuar-se alguma, compunham um futuro que, não por acaso, era seu.

Ela não sabia o que era o amor.

    Andava distraída, dispersa. O lábio úmido dava-lhe a sensação de sede. Ou seria o contrário?
    Mal sabia ela o que a esperava. Certo calor percorreu-lhe a espinha e um estranho som invadia a terça parte de sua audição aguçada. Era inverno.
    Havia calor dentro de si, mas o engraçado era que não o traduzia, tremia com o frio ar que bagunçava-lhe os longos cabelos negros.
    Havia também perguntas. A cabeça doía e davam-lhe náuseas só em imaginar respondê-las. Ela não sabia o que era o amor. Desabrochara nela feito uma flor murcha que precisa ser podada até o talo para então, crescer.
    No solo fértil de sua imaginação o descrevia como algo perfeito e infinito, desses que assistia nas novelas noturnas da velha televisão de sua casa. Parecia-lhe, agora, o avesso. Não havia um arco-íris de cores vibrantes por todos os lados, ela não o enxergava. Não caminhava sorrindo como se tudo fosse brincadeira de roda infantil, sempre retorcia o canto direito da boca numa expressão de desdém.
    Era diferente de tudo o que já sentira, mas, inocente em suas reflexões dizia desapontada: “Por que não é lindo?”
    Ela não acreditava que algo tão intenso e profundo como lhe diziam fosse apenas aquela bobeira na qual estava afundada como um submarino n’água.
    Seus sonhos eram seus piores pesadelos e temia a noite seguinte só em recordá-los. Aquele frio na barriga inconveniente a irritava, arrepiando-a.
    Flutuava deitada em sua velha colcha de retalhos coloridos de encontro ao céu que responderia o que era toda aquela mescla de sensações estranhas interiores.
    Ela não sabia o que era o amor.
   Mal sabia que ele chegara. Mal sabia que tornar-se-ia permanente. Mal sabia que na sua ausência não ousaria respirar. E que ele era, sim, mesmo em todas suas contradições, lindo.

Sobre aparências e incertezas.

    Erroneamente achava-se perturbada com as incertezas. Mal sabia o que elas realmente lhe diziam sobre o certo e o errado.
    A beleza das diferenças enxergava-se na rotina diária, no caminhar norte ou sul, no abraço apertado ou polido. Apesar de reconhecer sua indecisão, ansiava algo mais concreto, palpável, aparente, sem disfarces ou capas para esconder-se do que outrora sentira.
    Havia algo que prendia sua atenção, que a fascinava e amedrontava, que ansiava querer com todas suas débeis forças, embora também largasse.
    Ela só não sabia o quê...

Sobre gostar.

    A vida só tem sentido a partir do momento em que a vontade e motivação passam a agir ao encontro de libertar-se das amarras que a rotina impõe. Aliás, quem disse que há horário e tempo para cada coisa?
    Para mim, pobre mortal, nada nesse mundo enorme é certo, sólido. Tudo muda, tudo gira, tudo vai, tudo é fase.
    Já imaginou o terror de ter de escovar os dentes diariamente às seis da manhã ou de almoçar a marmita requentada quando o sol no céu aponta o meio-dia?
    Não! Gosto mesmo é das incertezas e contradições. De tomar banana-split na sorveteria da esquina no frio congelante do inverno, de comer pizza amanhecida e gélida com ‘pingado’ escaldante no café da manhã, de vestir o pé com meia de lã em pleno mês de janeiro. Gosto de andar... É, andar a pé, descalça, caminhando sem direção nem rumo, sem pressa nem destino, observando as folhas caindo silenciosa e vagarosamente das copas das grandes árvores nas ruas apinhadas de gente.
    Meus olhos são minha companhia, sempre os levo a passear. E como eles gostam! Gosto de olhar a dona de casa varrendo a calçada de sua avenida com aquela grossa vassoura, daquelas que, ingênua imaginava há muito tempo ser de bruxas ou feiticeiras malvadas. Gosto de ver o entregador de Coca-cola andar apressado, de olho no engradado de seu caminhão ou daqueles casais velhinhos atravessando o sinal vermelho, os braços enrolados, a expressão pacífica, o olhar distante.
    E sabe de quê me recordo? Daquela época boa em que sentava a beira da pia, alongando os finos e curtos bracinhos para pegar o último bolinho de chuva da vasilha vermelha de vovó. Ah, eu era feliz e não sabia!
    Vivem dizendo essa expressão, não é? Pois, abelhuda que sou, acredito que bom mesmo é o hoje, o agora, o momento único que, por sinal já passou quando acabei de escrever este parágrafo.
    A vida é corriqueira, é fugaz, mas eu não sou, vivo cada minuto em seu segundo, cada passo em sua perna, uma coisa por vez, afinal, não há receita para a felicidade, ela pode ser o que eu quiser, certo?
    Você deve estar pensando consigo: “Poxa, mas que lerda, não?” Talvez. Mas, sobretudo, feliz.