"Penetras surdamente no reino das palavras."
Carlos Drummond de Andrade.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Sem medo de voltar


"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada."
Clarice Lispector
   
     O dia amanheceu nublado, frio, insuportável para meus frágeis dedos aguentarem esticar o cobertor quente e grosso em minha cama, mas já era muito tarde pra enrolar e dormir por mais algumas horas. Resolvi logo despertar.
    Chacoalhei a cabeça como se quisesse espantar o sono para longe e atentei-me em procurar os chinelos perdidos em algum lugar de meu quarto. Seria difícil pôr os pés no chão sem algo pra quebrar o frio que o piso branco e salmão exalava.
    Os primeiros sinais de chuva apareciam no céu negro. Logo mais as gotas começariam a fazer um barulho calmo e vagaroso, anunciando que estavam ali, enchendo a terra seca e hidratando os lençóis subterrâneos.  Senti que aquele seria um dia monótono, sem a menor graça e pus-me a planejar algo que pudesse preparar para o desjejum.
    Havia na geladeira um pote de manteiga caseira e, no fogão, uma caneca de leite fresco. Demorou até encontrar algumas torradas no forno e, ao olhar aquele banquete, deparei-me com a imensa fome que sentia. Não era nada demais, mas parecia-me um manjar dos deuses. Só assim é que me dei conta de que haviam algumas horas -18, na verdade- que deixara de me alimentar.
    Olhei fixamente para as folhagens penduradas na janela da casa e, lá de cima, uma gota d’água começava a descer, pequena e frágil, até tomar mais força e, como num escorregador, cair ao chão. Lá ela já não existia mais, tornara-se uma coisa só: desaparecia na força da enxurrada que brotava da calha do telhado.
    E assim era minha vida: um dia era notada, no outro passava despercebida, às vezes aglutinava-me com a multidão para que ninguém pudesse me ver, outrora gostava de caminhar sozinha como se precisasse de alguém que estivesse disposto a me ouvir, escutar minhas histórias infantis de menina boba, meus sonhos irrealizáveis ou minhas conversas entediantes e irrevogavelmente tolas. Era assim que gostava de estar. Era assim que me sentia, eu que era.
    Fiquei por um tempo absorta, os olhos cerrados, a expressão vazia. Mergulhava num sonho intenso e este soava iminente ante meus olhos. Havia tranquilidade e calmaria, as cores cintilavam um azul claro, quase esverdeado. Lembrei-me de minha colcha de retalhos, aquela que usava quando ainda era um frágil bebê em um berço apertado e improvisado, de madeira escura. Ah, as lembranças... Estas saltitavam em minha cabeça como um forte toque de alguma música de batidas compassadas. Aos poucos iam se distanciando, como uma forte dor de cabeça que vai, aos poucos, cessando. Rápidos segundos corriam e lá estavam de volta, retornando vagarosamente. Iam e voltavam. Voltavam e iam.
    Era de uma imensa estranheza o quanto aquelas cenas funcionaram para mim como um antídoto, um sedativo. Eu me sentia bem, chegando quase à felicidade de esboçar um sorriso amarelado.
    Mas não poderia mesmo durar por muito tempo. Nem mesmo uma infância que, embora fraca e pobre, fora feliz poderia trazer-me melhores dias. Eu tinha de decidir tudo. Eu tinha de decidir nada. Ambos caminhavam juntos: o tudo e o nada, assim como fogo e água, assim como amor e ódio.
    Eu poderia permanecer por incontáveis horas na cama, mas não suportava aquela escuridão. Eu preferia o céu, queria voar sem direção, preferia sonhar a cercar-me de coisas concretas. Eu gostava do que era ideal, não do real.
    Despertei assustada, os ponteiros do relógio marcavam três da tarde. A caneca de chocolate quente continuava na mesa, já fria. As torradas escorriam a manteiga na toalha. O sol estava se preparando para a tarde quente. Eu não tinha fome, o tempo em que estivera pensando se encarregou de preencher o vazio de meu estômago. Uma leve brisa batia em meu cabelo, levando-o lentamente para trás. Ajeitei-o para cima e prendi-o em um rabo. Havia uma presilha de borboleta, era desajeitada, parecia até desenho de criança inocente. Colorida e viva.
    Prendi-a no lado direito, abri o guarda-roupa a procurar um pulôver de lã velha. O sol estava brilhantemente radiante acima, embora não aquecesse. Era inverno. Abri a gaveta, enrolei o cachecol listrado de vermelho e cinza, fino e comprido que ganhara na primavera passada.
    A chave estava pendurada na porta a balançar, o móbile acima produzia um tilintar suave, parecido com um piano branco embalando música de ninar. Peguei-a e fui até o portão enferrujado. Tranquei-o e saí. Os passos desconcertados, desajeitados, desanimados. Olhei a imagem à minha frente... A grama estava de um verde claro, as pedrinhas brancas refletiam os raios para as nuvens, mais parecidas com algodão.
    Fui andando a passos lentos, assoviava uma cantiga, sem medo de voltar, sem pressa de chegar...