"Penetras surdamente no reino das palavras."
Carlos Drummond de Andrade.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Simples fato diário.

Poema tirado de uma notícia de jornal


João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(Manuel Bandeira)

    João Gostoso era homem simples, destes que não se importam em calçar um simples chinelo ou sapato lustroso. Para ele qualquer coisa estava de bom tamanho, até andava descalço, se fosse o caso. Trabalhava como carregador de feira-livre as segundas, quartas e sextas-feiras.
    Acordava cedinho, quando o galo ainda não tinha avisado a cidade de que o dia estava raiando e começava, então, o preparo para o longo dia de trabalho que haveria de ter. Não era nada fácil carregar aqueles caixotes pesados e grandes de diversas variedades leguminosas e de frutos.
    Dentre tudo o que vendia – e não era pouca coisa- o que mais lhe chamava a atenção era a cebola. Encantava-se com suas camadas e com a capacidade da mesma de provocar o lacrimejar nas donas de casa e famosos cozinheiros que a utilizavam. Era engraçado pensar que aquele simples algo arredondado estava presente na mesa diária de centenas de pessoas, e isso o fascinava.
    Achava-a como uma forma de unificar todos tipos de gente, afinal, desde os mais poderosos ricos até os mais humildes usavam de seu sabor para temperar, fosse o camarão ao molho branco ou o bife de carne de segunda.
    Identificava-se com ela e, não por acaso, era o que fazia sua alegria ao notar que os que paravam em sua banca admiravam-se com a forma que falava da mesma. Era quase poesia aos ouvidos de quem escutava e só não chegava a esse ponto porque João dava ar cômico cantarolando uma ode em seu louvor em pleno corredor de feira. Certa vez leu em um jornal diário a seguinte descrição sobre a cebola feita por Neruda: “Rosa de água com escamas de cristal”. Após tal ocorrido, nunca mais se esqueceu de tão magnífica comparação e utilizava-se dela como forma de convencimento e expressão de seu afeto pela raiz.
    Os que passavam por ele eram contagiados por tamanha animação e retornavam ao menos para comprar uma bandeja. Os compradores sentiam-se obrigados a levar a tão glorificada cabeça de cebola e fazer o dia daquele singelo feirante mais feliz. E ele, de fato, era feliz.
    Contudo, num desses dias fugazes em que montava sua banca, João espantou-se com a notícia de que seu mais amado produto – agora não só por ele, mas também por todos seus clientes- estava entrando em fase baixa e passaria por grande escassez. A notícia estava exatamente no mesmo jornal que lera tempos atrás. Foi nesse momento que João preocupou-se e concluiu que sua felicidade estava com os dias contados. E assim se fez. O tempo passou e, aos poucos, o espaço ocupado pelas cebolas em seu balcão foi tomado por cenouras, beterrabas, berinjelas...
    Como já era previsível, a cebola só era encaminhada para os grandes mercados da cidade, aqueles em que só a alta classe frequentava e, consequentemente, consumia. O que ele nunca imaginava que possível fosse aconteceu. Agora, só os ricos temperavam e podiam saborear suas refeições com aquela que antes pertencia e era acessível a todos. João entristeceu-se e a feira junto dele, nunca mais foi o mesmo. Vendia o que pedissem. Falava o que perguntassem. Emagreceu. Já não cantava mais, já não achava sentido algum no que fazia.
    Foi num desses entardeceres que foi caminhando sem rumo e desviou-se do caminho de casa. Andava vagarosamente, sem pressa de chegar a lugar algum. Parou no bar Vinte de Novembro em frente à praia e achou ali um bom lugar para, talvez, esquecer-se dos problemas que a vida lhe oferecia. Estava amargurado.
    Num canto tocava um violeiro uma cantiga serena e muitos juntavam-se a ele para escutar, talvez desabafar ou como dizem por aí, chorar as mágoas. João, não indeciso, juntou-se a eles, o corpo cansado, na mão um copo cheio de qualquer bebida.
    A noite passou rápida demais. Inconsciente que estava, atravessou a rua movimentada, o sinaleiro aberto, por um filete não foi atropelado. Ouviu ao longe a buzina da moto que passava, absorto que estava em pensamentos.
    Chegou, enfim, à Lagoa Rodrigo de Freitas e ali traçar-se-ia, definitivamente, seu destino. Sem hesitar, tirou seus sujos chinelos amarelos, respirou fundo e atirou-se a água. Não houve o menor sinal de força feita para, ao menos, tentar nadar e salvar-se daquele tremendo horror que cometera. Apenas caiu. João morreu afogado e uma notícia na coluna esquerda apareceu narrando o ocorrido no dia seguinte. Por acaso, o jornal que retratara era o mesmo que ele lera tempos atrás.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Acredite, ele existe.

    Dia chuvoso é sinônimo de melancolia.
    Ao olhar as nuvens cinzentas que cobrem o céu não me dá senão outra impressão.
    O tempo escorre lentamente, a água corre agitada no meio-fio. O sol, preguiçoso que levantou, não põe à mostra seus longos raios, esconde-se atrás do algodão infinito e nem sequer seus longos braços dourados estica.
    O homem que espera ansioso o sinal vermelho brilhar para atravessar a avenida encolhe-se com o vento áspero que sopra os olhos cansados.
    A expressão distante das pessoas ao caminhar vagarosamente pelas ruas impressiona-me e logo penso se todos os despertadores resolveram acordar mais cedo.
    O olho gira, a imagem a frente embaça, logo desaparece. O som de fundo se esvai e a cabeça pesa como se implorasse por apoio. Os pensamentos se devaneiam. Nada mais resta à memória: cochila-se.
    O trânsito é lento, os movimentos corporais também. Tento me refugiar em algo, mentindo pra mim mesmo que todas minhas ações ocorrem, sem exceção, em câmera lenta.
    Mas era estranho ver o tempo correndo vagarosamente. Aquele cara que sempre corria na avenida de manhã, agora tinha movimentos de quem corre sem pressa. O jornaleiro que dirigia atropelado sua motocicleta agora analisa todas as faixas pintadas ao chão, obedecendo-as.
    No fundo, eu queria compreender o que se sucedia. Mas era em vão. Sem sucesso forçava os neurônios a fazerem suas ligações mais depressa, e eles nunca estiveram tão sem vontade de exercer seu único ofício.
    Começava a perceber gotículas de água que escorriam pelos fios delgados de meu cabelo. Desciam silenciosamente, passando pelas marcas de expressão de minha testa e, ante a meus olhos, podia vê-las caindo, como se estivessem a bordo de um para-quedas.
    Nada era fugaz.
    Por um momento, cheguei a pensar – e com a mais absoluta certeza, uns grandes minutos haviam decorrido – se era alguma fantasia de alguma imaginação perturbada.
    Haveria eu de estar nervoso por algum motivo vão? Por que aquilo acontecia e a minha impotência em simplesmente não poder fazer nada era cada vez maior?
    Eu já cansava. Náuseas enojavam-me. Doía.
    No meio de toda aquela alucinação, sentei a beira da calçada e foi difícil de conseguir deitar-me no chão gelado e áspero. Talvez daquele modo eu ficasse melhor – não tão ruim, na verdade – e, ao longe, ouvi o som macio de papel. Não por acaso, era aquele que estava em meu bolso desde o dia anterior.
    Incessante, forcei-me a abri-lo e tamanha foi minha surpresa.
    “Amanhã, logo após o amanhecer. Segundo quarteirão da Rua 3.”
    Tudo o que mais procurava, naquele momento, era ao menos lembrar-me qual o motivo daquela anotação naquele pedaço de papel amassado. Decidi que, então, seria melhor ir até o local que lá estava descrito a tentar descobrir.
    Busquei nas raízes mais profundas ânimo em levantar-me e caminhar por muito tempo novamente, sem andar sequer meia légua. Acho que a sorte conspirava em meu favor. Não estava muito distante de mim a segunda quadra.
    Concentrei-me em somente andar. Agora a rua estava apinhada de pessoas cheias de sacolas coloridas de compras. Pareciam felizes.
    Emendei um sorriso torto para um garoto que andava distraído com sua mãe. Era difícil relaxar meus músculos e notei que para ele a compreensão era demorada, mas seu sorriso de agradecimento não parecia esgotar forças.
    Surgiam-me flashes de vozes e assustei-me ao perceber que agora ouvia sons. Aos poucos, o sol iluminava a terça parte da esquina e eu não demorava tanto para dar um passo. Levantei minha mão para alcançar o suor de meu rosto e o reflexo de meu braço parecia ágil.
    Aquilo era tudo o que de mais havia de estranho, mas eu não queria pensar em respostas. Sim, tudo estava voltando, retornando ao seu lugar.
    O relógio da Catedral batia agora: nove horas. O tilintar do sino ainda parecia-me distante, mas eu podia ouvi-lo e enorme sorriso esbocei de satisfação.
    Distraído atentava-me a simples coisas que antes não faziam menor sentido e, sem perceber, dobrava a Rua 3.
    Fixei em olhar, e somente olhar a frente.
    E lá estava ela. Andava depressa, olhando para seu pulso.
    Ao olhar-me, seus olhos contraíram-se numa expressão de pena. Estava linda.
    Suas únicas palavras foram estas: “Lamento muito em fazer-te esperar tanto tempo.”
    Abriu então um pacote de presente amassado, e de dentro dele saiu um pingente em formato de coração.Era vermelho-sangue.
    “Gostaria que nosso encontro tivesse acontecido ao mesmo tempo, e que você não estivesse chateado em aguardar minha chegada. Este é o meu coração, que agora é seu. Feliz Aniversário.”
    Naquele instante de segundo eu passei a acreditar em destino.



terça-feira, 20 de abril de 2010

Traz inspiração.

Soneto de Fidelidade
(Vinicius de Moraes)

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

[In] felicidade: eis a questão

   
" A suprema felicidade da vida é a convicção de ser amado por aquilo que você é, ou mais corretamente, de ser amado apesar daquilo que você é."  [Victor Hugo]
    Vive-se a era da informatização, da moda e da tecnologia, onde os produtos oferecidos pelas mesmas atraem e induzem pessoas a sempre renovarem seus pertences, seus chamados bens materiais. Tais propriedades preenchem um prazer momentâneo mas que, infelizmente, deve ser renovado logo. É a felicidade rápida, fugaz. Logo estar-se-á a procurar novidades ou haverá a precisão em consumir mais, comprar mais.
    A cultura de massas demonstra isso de forma muito eficaz, com propagandas convincentes e ideias brilhantes em relação a convencer os consumidores. Faz-se do produto descartável uma necessidade e acaba-se por levar, cada vez mais, indivíduos a aceitarem tal forma de vida.
    O ter está aliado diretamente ao ser, concepção essa totalmente errada. O que se pensa é o que se é, logo, o que se tem não significa absolutamente nada nesse aspecto. O mundo do ser é o mundo das ideias, do modo de agir de cada um, de como encara-se a realidade, enfim, do que escolhe-se pra si. Já o ter é o que se consome, chamada propriedade privada. Deste modo, ela compõe, chega a fazer parte do ser, mas não o é.
    Certa matéria, encontrada na Revista Superinteressante, afirma o segredo da vida. Pensa-se ser algo muito difícil de alcançar ou atingir e surpreende-se ao ler que é, de fato, algo muito singelo: simplesmente ter amigos. Nas experiências feitas, pessoas são analisadas desde o seu nascimento até a vida adulta e constata-se que as que possuíram amigos foram as que viveram por mais tempo e que, consequentemente, foram mais felizes.
    Assim, percebe-se que não existe segredo para a felicidade, já que esta é algo quase impossível de ser atingido em sua totalidade, mas que existem gestos e atos que tornam a vida mais proveitosa, prazerosa e que são, não por acaso, o que existe de mais simples. É tarefa difícil despojar-se das ambições, algo comum entre seres humanos, para tentar seguir de modo humilde, e isso não significa subtrair tudo o que existe de consumível.
    Aprofundando no que significa a palavra consumo: destruição, destruir; enfraquecer, abater; desgostar, mortificar; apoquentar-se, já se pode criar uma noção do que o mesmo faz/trás a quem o coloca em prioridade.
    Afinal, qual é a razão principal em ser feliz?
    Há certa necessidade em ter também, mas não é preciso o acúmulo dessas riquezas, já que estas só são primordiais quando no sentido figurado: riquezas de bem-estar, de saúde, de emoções e sentidos e, justamente, de amigos.