Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(Manuel Bandeira)
João Gostoso era homem simples, destes que não se importam em calçar um simples chinelo ou sapato lustroso. Para ele qualquer coisa estava de bom tamanho, até andava descalço, se fosse o caso. Trabalhava como carregador de feira-livre as segundas, quartas e sextas-feiras.
Acordava cedinho, quando o galo ainda não tinha avisado a cidade de que o dia estava raiando e começava, então, o preparo para o longo dia de trabalho que haveria de ter. Não era nada fácil carregar aqueles caixotes pesados e grandes de diversas variedades leguminosas e de frutos.
Dentre tudo o que vendia – e não era pouca coisa- o que mais lhe chamava a atenção era a cebola. Encantava-se com suas camadas e com a capacidade da mesma de provocar o lacrimejar nas donas de casa e famosos cozinheiros que a utilizavam. Era engraçado pensar que aquele simples algo arredondado estava presente na mesa diária de centenas de pessoas, e isso o fascinava.
Achava-a como uma forma de unificar todos tipos de gente, afinal, desde os mais poderosos ricos até os mais humildes usavam de seu sabor para temperar, fosse o camarão ao molho branco ou o bife de carne de segunda.
Identificava-se com ela e, não por acaso, era o que fazia sua alegria ao notar que os que paravam em sua banca admiravam-se com a forma que falava da mesma. Era quase poesia aos ouvidos de quem escutava e só não chegava a esse ponto porque João dava ar cômico cantarolando uma ode em seu louvor em pleno corredor de feira. Certa vez leu em um jornal diário a seguinte descrição sobre a cebola feita por Neruda: “Rosa de água com escamas de cristal”. Após tal ocorrido, nunca mais se esqueceu de tão magnífica comparação e utilizava-se dela como forma de convencimento e expressão de seu afeto pela raiz.
Os que passavam por ele eram contagiados por tamanha animação e retornavam ao menos para comprar uma bandeja. Os compradores sentiam-se obrigados a levar a tão glorificada cabeça de cebola e fazer o dia daquele singelo feirante mais feliz. E ele, de fato, era feliz.
Contudo, num desses dias fugazes em que montava sua banca, João espantou-se com a notícia de que seu mais amado produto – agora não só por ele, mas também por todos seus clientes- estava entrando em fase baixa e passaria por grande escassez. A notícia estava exatamente no mesmo jornal que lera tempos atrás. Foi nesse momento que João preocupou-se e concluiu que sua felicidade estava com os dias contados. E assim se fez. O tempo passou e, aos poucos, o espaço ocupado pelas cebolas em seu balcão foi tomado por cenouras, beterrabas, berinjelas...
Como já era previsível, a cebola só era encaminhada para os grandes mercados da cidade, aqueles em que só a alta classe frequentava e, consequentemente, consumia. O que ele nunca imaginava que possível fosse aconteceu. Agora, só os ricos temperavam e podiam saborear suas refeições com aquela que antes pertencia e era acessível a todos. João entristeceu-se e a feira junto dele, nunca mais foi o mesmo. Vendia o que pedissem. Falava o que perguntassem. Emagreceu. Já não cantava mais, já não achava sentido algum no que fazia.
Foi num desses entardeceres que foi caminhando sem rumo e desviou-se do caminho de casa. Andava vagarosamente, sem pressa de chegar a lugar algum. Parou no bar Vinte de Novembro em frente à praia e achou ali um bom lugar para, talvez, esquecer-se dos problemas que a vida lhe oferecia. Estava amargurado.
Num canto tocava um violeiro uma cantiga serena e muitos juntavam-se a ele para escutar, talvez desabafar ou como dizem por aí, chorar as mágoas. João, não indeciso, juntou-se a eles, o corpo cansado, na mão um copo cheio de qualquer bebida.
A noite passou rápida demais. Inconsciente que estava, atravessou a rua movimentada, o sinaleiro aberto, por um filete não foi atropelado. Ouviu ao longe a buzina da moto que passava, absorto que estava em pensamentos.
Chegou, enfim, à Lagoa Rodrigo de Freitas e ali traçar-se-ia, definitivamente, seu destino. Sem hesitar, tirou seus sujos chinelos amarelos, respirou fundo e atirou-se a água. Não houve o menor sinal de força feita para, ao menos, tentar nadar e salvar-se daquele tremendo horror que cometera. Apenas caiu. João morreu afogado e uma notícia na coluna esquerda apareceu narrando o ocorrido no dia seguinte. Por acaso, o jornal que retratara era o mesmo que ele lera tempos atrás.