“Estranho seria se eu não
me apaixonasse por você.”
[Nando Reis.]
Subitamente sinto a perna tremer, o coração disparar como se almejasse expulsar todo o sangue que percorre veias e artérias até desaguar em meus músculos. Percebo que a cabeça pesa pedindo por descanso e que o ar torna-se impossível de respirar. Faz calor além da janela, contudo meu interior é frio. A boca seca, as mãos não param de se mexer freneticamente –queria eu escondê-las- e, pela primeira vez, não posso imaginar o que inebria meus impulsos nervosos.
Agora está tudo congelado, imóvel, inóspito. Ouço vozes dizendo meu nome e tento me concentrar no que conversam a minha volta. Falam comigo e é até engraçado como converso sem saber completamente nada do que falo. Eu necessitava de algum sinal –vindo do além, quem sabe- que me fizesse perceber que há algo que me corrói e me conforta completamente em você. Seu falar bagunçado, seu silêncio angustiante, seus passos lentos ou sua cara de ‘acabo de acordar’ que por [in] felicidade minha não encaro nem por um decreto.
Não é porque sua voz rouca me faz perder os sentidos. Não é porque seus óculos escuros encaixam-se perfeitamente desajeitados nas curvas de seu rosto. Não é porque você esboça um enorme sorriso a cada vez que me vê, mesmo sabendo ser por reles simpatia e nem por seu perfume impregnado na orla da minha blusa de manga longa toda vez que me abraça por segundos intermináveis.
O problema é que enxergo de forma invertida o óbvio. E o mundo é racional enquanto eu, perdida no universo paralelo, tento resgatar um resquício de irracionalidade e trazer para nosso mundo. O problema é que ele não para de girar...
Sabe, às vezes perco-me em fugazes pensamentos e penso ser melhor afastar-me de você e de toda a bagagem irritante que você carrega. Todas suas manias, manhas e exageros desmedidos que traçam seu temperamento forte e inquebrável: em vão ousava ficar ao teu lado tentando explicar-te o modo “correto” das coisas. O meu modo correto, embora ainda ache que a opinião é minha e da metade das criaturas existentes no planeta.
Você é a contradição humanizada. E, numa dessas, foi quando te encontrei calado feito mudo, penetrado no que via à frente: um banco de madeira vermelha, envelhecido e torto. Um casal de velhinhos a conversar sossegadamente lá estava. Falas mansas, olhares distantes. Deveriam refletir sobre a vida, já que esta se aproximava do fim. E eu, ingênua que era, imaginei no instante em que o vi observando, que pudesse estar absorto em pensamentos passar por aquela –que, por sinal, era linda- cena que víamos.
Assustei-me quando vi você chacoalhar a cabeça num sinal de reprovação. Certamente não gostara e, obviamente, achara ridícula a imagem de um destino cravado na união de duas criaturas completamente apaixonadas, ainda que a idade os fizesse adoecer.
Eles morreriam juntos, era de se admirar!
Eu já sabia, desde a primeira vez em que pousei o olhar sobre tua cara amarrada jurando que não ousaria erguê-lo novamente a te fitar, que estava descaradamente mentindo.
Mentindo assim como quando finjo que estou bem sem você por perto. Mentindo como quando digo que odeio suas manias e seu modo egoísta de olhar tudo a volta. Assim como suas roupas estranhamente lindas e mal passadas, seu cabelo espalhado e embaraçado, sua sobrancelha fina e despenteada, suas mãos ásperas e grandes, seu vocabulário rude e insensato. Minto quando penso ter passado uma borracha branca e lisa no que pouco há de escrito sobre você nas páginas rabiscadas de meu diário...
Queria tanto descobrir o que está traçado em meu destino, me ver já crescida e formada, com responsabilidade, tomando decisões importantes –não como agora onde decido o que vestirei pra ir ao colégio ou o que assinalar nas questões alternativas das provas- e pensando na vida de antigamente. Acho que sentirei saudades, mas hoje isso não importa. Eu queria mesmo é ter tempo de sobra pra não pensar em você. Não querer imaginar o que está pensando ou comendo. Com quem está falando ou como fala. O que está lendo nas páginas dos jornais nas manhãs de domingo e se está impressionado com tanta desgraça. Eu queria, sinceramente, saber.
Engraçado ou decepcionante é imaginar que não posso/consigo fazer nada que, ao menos, me faça aproximar da rua onde você mora. Quando viro a esquina, a covardia se apodera de minhas forças e logo estou eu, caminhando no sentido contrário, me desviando do caminho onde você poderia estar.
Pode ser que Platão tenha mesmo razão. É ainda algo muito infantil pra se ter certeza e confiar no que faz minhas mãos suarem frio.
Amor platônico, diria assim.
O problema é que eu confio no que há de inabitável em mim. Sei que isso não mudará tão cedo –e acho, sinceramente, que não quero mesmo mudar. Está perfeitamente desenhado e brilha como quando a água é iluminada pelos raios de sol ou quando o céu fica cor-de-laranja num lento fim de tarde.
Acho que quero mesmo é ficar assim, contraditória feito eu, incerta e cheia de dúvidas inacabáveis. Um tanto quanto birrenta e chorona, desastrada, complicada, de lua e destrambelhada.
Certo é somente o que sinto palpitar e tomar conta de meus pensamentos quando o rádio cinzento e velho de meu quarto arranha algumas notas. Coram-se as maçãs do rosto, abre-se um meio sorriso e a lembrança vaga do que restou e do que ainda há de se escrever dança uma música, caindo vagarosamente feito uma luva:
“E nossa história
Não estará
Pelo avesso assim
Sem final feliz
Teremos coisas bonitas pra contar
E até lá
Vamos viver
Temos muito ainda por fazer
Não olhe pra trás
Apenas começamos
O mundo começa agora
Apenas começamos.”
O que falta é coragem pra começar a construir e desenhar o mundo, nosso mundo.