"Penetras surdamente no reino das palavras."
Carlos Drummond de Andrade.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

É preciso.

"A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca;
pisca e estuda; pisca e ama; pisca e
cria filhos; pisca e geme os reumatismos;
por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? – perguntou o Visconde.
- Depois que morre vira hipótese. É ou não é?"
Monteiro Lobato.

   Às vezes é preciso que se passe uma borracha branca e macia no que acontece nessa vida amarga, feito café sem açúcar.
  É preciso mais doce, mais doçura. Que as pessoas saibam amar o que outrora odiavam e que dêem valor nas mais singelas coisas que se passam no decorrer das horas fugazes.
 Mas ninguém ainda não aprendeu nada.
 Desespero-me ao ver nas ruas velhinhos, as costas curvadas, trabalhando arduamente, sem perspectiva alguma, sem esboçar um breve sorriso.
    Talvez eles sejam felizes. Talvez. É tudo tão incerto, tudo tão vago, passageiro. Estranho é ficar imaginando o porquê de as coisas serem como são. O fato é que tudo acontece tão perfeitamente... É tudo tão ligado feito teias de aranha: cada vértice com sua aresta. As imagens simétricas, refletidas como espelho n’água, como gota despejada e caída silenciosamente no chão; vai entrando, penetrando vagarosamente em terra seca. Aos poucos vai sumindo, devagar. Logo desaparece, vira pó novamente.
    Pó que entra nas narinas ressecadas, logo surge um espirro. Alto, rápido. E assim é o tempo...
    O tempo é longo, o tempo é curto. O tempo corre. O tempo lerdeia. O tempo cai. O tempo para.
    Segundos intermináveis, minutos corridos quando, enfim, o tempo morre.
    Morre e vira o quê?
    Vira pó. Pó que não perde sua secura, pó que nada fala, nada vê, nada ouve. Pode ser fino, grosso, áspero ou macio. Depende de como você o peneirou, depende de como você o cuidou. Depende de como você o enxergou. Ele pode ser bom ou ruim, tudo é a forma como você o enxerga. Ele pode até ser Deus. Pode ser aglutinado, formando uma pedra dura e fria. Mas ele pode ser brilhante também. Pode trazer a alegria de crianças que, olhando para o céu, pedem sonhos a essa poeira. Poeira de estrelas.

E assim, fico eu a pensar.

"Duas coisas indicam fraquezas:
calar-se quando é preciso falar,
e falar quando é preciso calar-se."


Fraca sou, o Provérbio Persa tem mesmo razão...

terça-feira, 6 de julho de 2010

O que há de guardado -dentro de nós.

“Estranho seria se eu não
me apaixonasse por você.”
[Nando Reis.]

    Subitamente sinto a perna tremer, o coração disparar como se almejasse expulsar todo o sangue que percorre veias e artérias até desaguar em meus músculos. Percebo que a cabeça pesa pedindo por descanso e que o ar torna-se impossível de respirar. Faz calor além da janela, contudo meu interior é frio. A boca seca, as mãos não param de se mexer freneticamente –queria eu escondê-las- e, pela primeira vez, não posso imaginar o que inebria meus impulsos nervosos.
    Agora está tudo congelado, imóvel, inóspito. Ouço vozes dizendo meu nome e tento me concentrar no que conversam a minha volta. Falam comigo e é até engraçado como converso sem saber completamente nada do que falo. Eu necessitava de algum sinal –vindo do além, quem sabe- que me fizesse perceber que há algo que me corrói e me conforta completamente em você. Seu falar bagunçado, seu silêncio angustiante, seus passos lentos ou sua cara de ‘acabo de acordar’ que por [in] felicidade minha não encaro nem por um decreto.
    Não é porque sua voz rouca me faz perder os sentidos. Não é porque seus óculos escuros encaixam-se perfeitamente desajeitados nas curvas de seu rosto. Não é porque você esboça um enorme sorriso a cada vez que me vê, mesmo sabendo ser por reles simpatia e nem por seu perfume impregnado na orla da minha blusa de manga longa toda vez que me abraça por segundos intermináveis.
    O problema é que enxergo de forma invertida o óbvio. E o mundo é racional enquanto eu, perdida no universo paralelo, tento resgatar um resquício de irracionalidade e trazer para nosso mundo. O problema é que ele não para de girar...
    Sabe, às vezes perco-me em fugazes pensamentos e penso ser melhor afastar-me de você e de toda a bagagem irritante que você carrega. Todas suas manias, manhas e exageros desmedidos que traçam seu temperamento forte e inquebrável: em vão ousava ficar ao teu lado tentando explicar-te o modo “correto” das coisas. O meu modo correto, embora ainda ache que a opinião é minha e da metade das criaturas existentes no planeta. 
    Você é a contradição humanizada. E, numa dessas, foi quando te encontrei calado feito mudo, penetrado no que via à frente: um banco de madeira vermelha, envelhecido e torto. Um casal de velhinhos a conversar sossegadamente lá estava. Falas mansas, olhares distantes. Deveriam refletir sobre a vida, já que esta se aproximava do fim. E eu, ingênua que era, imaginei no instante em que o vi observando, que pudesse estar absorto em pensamentos passar por aquela –que, por sinal, era linda- cena que víamos. 
    Assustei-me quando vi você chacoalhar a cabeça num sinal de reprovação. Certamente não gostara e, obviamente, achara ridícula a imagem de um destino cravado na união de duas criaturas completamente apaixonadas, ainda que a idade os fizesse adoecer.
    Eles morreriam juntos, era de se admirar!
    Eu já sabia, desde a primeira vez em que pousei o olhar sobre tua cara amarrada jurando que não ousaria erguê-lo novamente a te fitar, que estava descaradamente mentindo.
    Mentindo assim como quando finjo que estou bem sem você por perto. Mentindo como quando digo que odeio suas manias e seu modo egoísta de olhar tudo a volta. Assim como suas roupas estranhamente lindas e mal passadas, seu cabelo espalhado e embaraçado, sua sobrancelha fina e despenteada, suas mãos ásperas e grandes, seu vocabulário rude e insensato. Minto quando penso ter passado uma borracha branca e lisa no que pouco há de escrito sobre você nas páginas rabiscadas de meu diário...
    Queria tanto descobrir o que está traçado em meu destino, me ver já crescida e formada, com responsabilidade, tomando decisões importantes –não como agora onde decido o que vestirei pra ir ao colégio ou o que assinalar nas questões alternativas das provas- e pensando na vida de antigamente. Acho que sentirei saudades, mas hoje isso não importa. Eu queria mesmo é ter tempo de sobra pra não pensar em você. Não querer imaginar o que está pensando ou comendo. Com quem está falando ou como fala. O que está lendo nas páginas dos jornais nas manhãs de domingo e se está impressionado com tanta desgraça. Eu queria, sinceramente, saber.
    Engraçado ou decepcionante é imaginar que não posso/consigo fazer nada que, ao menos, me faça aproximar da rua onde você mora. Quando viro a esquina, a covardia se apodera de minhas forças e logo estou eu, caminhando no sentido contrário, me desviando do caminho onde você poderia estar.
    Pode ser que Platão tenha mesmo razão. É ainda algo muito infantil pra se ter certeza e confiar no que faz minhas mãos suarem frio.
    Amor platônico, diria assim.
    O problema é que eu confio no que há de inabitável em mim. Sei que isso não mudará tão cedo –e acho, sinceramente, que não quero mesmo mudar. Está perfeitamente desenhado e brilha como quando a água é iluminada pelos raios de sol ou quando o céu fica cor-de-laranja num lento fim de tarde.
    Acho que quero mesmo é ficar assim, contraditória feito eu, incerta e cheia de dúvidas inacabáveis. Um tanto quanto birrenta e chorona, desastrada, complicada, de lua e destrambelhada.
    Certo é somente o que sinto palpitar e tomar conta de meus pensamentos quando o rádio cinzento e velho de meu quarto arranha algumas notas. Coram-se as maçãs do rosto, abre-se um meio sorriso e a lembrança vaga do que restou e do que ainda há de se escrever dança uma música, caindo vagarosamente feito uma luva:

“E nossa história
Não estará
Pelo avesso assim
Sem final feliz
Teremos coisas bonitas pra contar
E até lá
Vamos viver
Temos muito ainda por fazer
Não olhe pra trás
Apenas começamos
O mundo começa agora
Apenas começamos.”

    O que falta é coragem pra começar a construir e desenhar o mundo, nosso mundo.